VIDA: MODO DE USAR
No Tibete há uma curiosa tradição de se descobrir as reencarnações dos grandes mestres. Elas são identificadas muitas vezes na primeira infância e recebem educação especial para serem também os mestres do futuro. Não que seja comum, mas ocorreu com o atual Dalai Lama – como é retratado no filme Kundun, de Martin Scorsese – e com o autor deste belíssimo livro.
Sogyal Rinpoche tinha seis meses quando foi levado a um mosteiro tibetano para ser educado por um grande lama* de então: Jamyang Khyentse. Era o ano de 1947, às vésperas da vergonhosa invasão chinesa, e lembremos que os lamas são mais que sacerdotes com belos mantos cor de telha. Além do cuidar dos afazeres litúrgicos, eles são filósofos, professores, terapeutas e médicos que prestam apoio aos enfermos e aos que estão próximos da morte na sua comunidade.
“Quando vim pela primeira vez ao Ocidente, fiquei chocado com o contraste entre as atitudes em relação à morte com que eu havia sido criado e as que então encontrei.”
Sogyal Rinpoche
Livro Tibetano dos Mortos
Quando Sogyal estava preparado, seu mestre o orientou nas práticas e técnicas contidas no “Livro Tibetano dos Mortos”, uma das escrituras mais sagradas e importantes do budismo tibetano, com instruções para lidar com a própria morte e a de terceiros com calma e plenitude. Foi a partir da experiência ‘de campo’ com seu mestre, considerado um homem santo, que surgiu “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”.
Lançado nos Estados Unidos em setembro de 1992, a obra foi traduzida em mais de 30 idiomas e superou os três milhões de exemplares vendidos. “O que estou procurando fazer (…) é explicar e ampliar o Livro Tibetano dos Mortos para abranger não apenas a morte, mas também a vida, apresentando em detalhes a totalidade do ensinamento de que o Livro Tibetano dos Mortos é apenas uma parte”, explica Sogyal nos trechos iniciais de sua obra.
Exílio e budismo no ocidente
Uma ampliação da escritura que lhe deu origem, portanto, mas também uma atualização e uma tradução. Ao tornar a abordagem budista da vida e da morte acessíveis a nossas mentes ocidentais, Sogyal deu sentido e finalidade à saga de milhares de lamas expatriados pela invasão de seu país em 1950. Exilado na Índia após o trágico episódio que deixou mais de um milhão de mortos e seis mil mosteiros destruídos, ele frequentou uma escola católica em Kalimpong, cursou uma universidade em Nova Deli e em 1971, aos 24 anos, iniciou o estudo de Religiões Comparadas no Trinity College, em Cambridge, como professor visitante.
Sogyal foi um dos organizadores da primeira visita do Dalai Lama ao Ocidente, em 1973, traduziu importantes obras do budismo tibetano e desde os anos de 1970 está à frente da Rigpa Fellowship, uma rede internacional com mais 130 centros budistas, em 30 países diferentes. Ao nos ensinar que a vida e morte são etapas complementares de um ciclo contínuo e não experiências que se contradizem e se negam, o monge exilado compartilha com o mundo a única riqueza que os chineses não saquearam do Tibete: um sentido positivo para a vida.
*monge do budismo tibetano em grau mais avançado
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer – Sogyal Rinpoche [Palas Athena]
Leia alguns trechos:
“Todas as grandes tradições espirituais do mundo, inclusive, é claro, o cristianismo, dizem explicitamente que a morte não é o fim. Todas falam em algum tipo de vida futura, o que infunde em nossa vida atual um sentido sagrado. Mas, não obstante esses ensinamentos, a sociedade moderna é em larga escala um deserto espiritual em que a maioria imagina que esta vida é tudo o que existe. Sem nenhuma fé autêntica e real numa vida futura, a maioria das pessoas vive toda a sua existência destituída de um significado supremo.”
“Talvez a razão mais profunda de termos medo da morte é que não sabemos quem somos. Acreditamos numa identidade pessoal única e separada, mas se ousarmos examiná-la descobriremos que essa identidade depende inteiramente de uma série infindável de coisas que a sustentam: nosso nome, nossa ‘biografia’, nossos companheiros, família, lar, emprego, amigos, cartões de crédito… É nesse suporte provisório e frágil que apoiamos nossa segurança. Assim, quando isso tudo nos for retirado, saberemos de fato quem somos?”
“O termo tibetano para designar corpo é lü, que significa ‘algo que deixamos para trás’, como bagagem. Cada vez que dizemos lü, isto nos lembra que somos apenas viajantes, temporariamente abrigados nesta vida e neste corpo.”
“É antes de tudo porque ignoramos a verdade da impermanência que sentimos tanta angústia face à morte e tanta dificuldade de encará-la frente a frente. Queremos tão desesperadamente que tudo continue como é que teimamos em acreditar que as coisas ficarão sempre do mesmo jeito.”
REVISTA ALMA – ESPIRITUALIDADE CONTEMPORÂNEA
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