O GRANDE ENCONTRO
Uma grande celebração foi organizada quando Desmond Tutu completou 80 anos, em 2011. Arcebispo Emérito da África do Sul e Nobel da Paz em 1984, Tutu cercou-se de amigos e celebridades como Bono Vox e Graça Machel (viúva de Nelson Mandela), mas uma cadeira vazia marcou a grande ausência da noite: o Dalai Lama. Antagonista de Tutu, o governo sul-africano cedeu à pressão da China e não deu o visto ao convidado de honra da celebração.
Outros oitenta
Quatro anos depois a situação se inverteria. A figura máxima do budismo tibetano completaria 80 anos e convidaria o amigo Tutu para os festejos. Não em seu próprio país, o Tibete, mas em sua residência no exílio, em Dharamsala, na Índia, onde vive com milhares de tibetanos exilados. O arcebispo não pensou duas vezes. Mesmo lutando contra um câncer, e proibido de viajar, preparou as malas e pegou um avião.
Do encontro dos dois surgiu o livro “Contentamento – O segredo para a felicidade plena e duradoura”, uma ideia brilhante do escritor, editor e agente literário americano Douglas Abrams, que acompanhou uma semana de convívio e diálogo entre os religiosos, com quem divide a autoria da obra.
Simpatia é quase amor
“Nunca antes eles tiveram, nem provavelmente teriam depois, a chance de passar tanto tempo juntos, deleitando-se no contentamento da sua amizade”, escreve Douglas na introdução da obra, que conta ainda com fotos a intensa intimidade entre os dois Nobel da Paz (o tibetano o recebeu em 1989).
A relação do budista e do cristão é surpreendente. Se outras lideranças burocratizam um encontro (inter-religioso) que deveria ser bem mais habitual e natural do que é hoje, os dois quebram o protocolo e conversam como dois amigos de escola – o que inclui provocações, troca de carinho e gargalhadas que quase podem ser ouvidas pelo leitor. Mas também algumas lágrimas. Os octogenários viveram quase tudo que uma existência pode oferecer, de bom e de ruim.
Cheios de graça
Se o budista vive no exílio há mais de 50 anos e tem seu povo e sua cultura violentados sistematicamente pelos chineses, o cristão atravessou o obscurantismo do apartheid, superou uma poliomielite na infância e luta contra um câncer recorrente. Mas o sorriso quase permanente dos dois não dá nenhuma pista a esse respeito. De onde extraem tanto ânimo, alegria e contentamento? É o que Douglas Abrams tenta descobrir – e eles tentam explicar, embora seus exemplos e gargalhadas falem ainda mais alto que suas palavras. Torçamos que por muito tempo.
“Contentamento – O segredo para a felicidade plena e duradoura” – Dalai Lama e Desmond Tutu [Principium]
Leia alguns trechos:
“Deixe-me perguntar uma coisa”, interrompeu o Arcebispo. “Você está no exílio há mais de 50 anos?”
“Cinquenta e seis”
“Cinquenta e seis anos longe de um país que você ama mais do que qualquer outra coisa. Por que você não é taciturno?”
(…)
“Uma de minhas práticas vem de um velho professor indiano”, começou o Dalai Lama a responder a pergunta do Arcebispo. “Ele ensina que, quando você vivencia uma situação trágica, deve pensar sobre ela. Se não há como superar a tragédia, então não há por que se preocupar tanto. Então eu pratico isso.”
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“Deveríamos viver em contentamento”, explicou o arcebispo. “Isso não significa que a vida será fácil e sem sofrimento. Significa que podemos virar o nosso rosto para o vento e aceitar que aquela é a tempestade pela qual devemos passar. Não conseguiremos ser bem-sucedidos negando que ela existe. A aceitação da realidade é o único lugar a partir do qual a mudança começa.”
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“Quando eu conheço alguém”, disse o Dalai Lama, (…), “eu sempre tento me relacionar com aquela pessoa em um nível humano básico. Nesse nível sei que, assim como eu, ele ou ela deseja encontrar a felicidade, ter menos problemas e enfrentar menos dificuldades na vida. (…). “Se, por outro lado, eu me relaciono com os outros a partir de uma perspectiva em que eu sou diferente (um budista, um tibetano etc.), crio com isso muros para me manter separado dos outros.”
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“Às vezes, quando você vê líderes políticos ou espirituais, eles têm expressões sérias no rosto…” O Dalai Lama se empertigou, franzindo as sobrancelhas e parecendo inflexível. “Isso torna as pessoas hesitantes, mas quando elas veem seu rosto…” (referindo-se a Tutu).
“É o narigão”, sugeriu o Arcebispo, e os dois riram.
Editor e publisher da Revista Alma, Gustavo São Thiago trabalhou na grande em imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, especialmente na área de cultura. Estudioso autodidata das religiões, o jornalista finaliza sua primeira obra de ficção, o romance “Impermanência”, e medita diariamente.