CLARICE LISPECTOR: UM TERREMOTO METAFÍSICO
Há peças que jamais deveriam sair de cartaz. Não importam os patrocinadores e a bilheteria. Não são para toda hora, como um poema de Drummond ou um noturno de Chopin. Mas se chega a hora e elas não em alguma parte, ai de nós. “Estudo para Missa para Clarice” é assim. Como foi “Artaud”, com o inesquecível Rubens Corrêa, e tem sido a “Alma Imoral”, com Clarice Niskier. Esses fenômenos do teatro que ninguém explica e que os jornais teimam em ignorar.
Além do entendimento
E é bom que ninguém explique. Como diz Wotzik-Clarice na peça em cartaz no Teatro dos Quatro, “não entender é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.” Ainda mais quando a questão é Deus. Não é spoiler, está no próprio subtítulo da peça: “Estudo para Missa para Clarice – Um espetáculo sobre o homem e seu Deus”.
Mas deixemos Clarice concluir: “Entender é sempre limitado. Mas não entender não tem fronteiras e leva ao infinito, ao Deus. (…). É uma benção estranha como a de ter uma loucura e não ser doido.”
Terremoto metafísico
Clarice tinha essa loucura. Ou seria lucidez? Lisérgica e fronteiriça, descrevia com precisão desconcertante o que a maioria nós nem sonha ver. Transvia, transconhecia e nos atualizava constantemente de sua vertigem. A escritora se definiu, sem querer, ao falar de santidade. “Quando o santo atinge a própria largueza, milhares de pessoas ficam alargadas (…).”
A obra de Clarice nos alarga. Por isso é imprescindível.
A salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale à pena.
É curioso notar, mas no mais alto diapasão, religião e arte compartilham o universo semântico: vertigem, mistério, êxtase, lucidez… O que define Clarice Lispector definiria tranquilamente Santa Teresa de Ávila. Expressar a vertigem mística exige um baita talento literário, é preciso reconhecer. Não basta ser santo, assim como não basta ter o Prêmio Pulitzer. É alguma coisa entre um e outro, ainda não identificada, e que o espetáculo tangencia, assim como a obra da escritora.
Ninguém passa por ela impunemente. Wotzik provou este veneno em 2007, ao dirigir “Um ato para Clarice”, e jamais se recuperou. Da experiência surgiu o monólogo “Clarice por Clarice”, com Clarice Niskier, depois o espetáculo de teatro-dança “Missa para Clarice” e finalmente a peça atual, em cartaz somente até o final de março. Então é preciso correr. Como Deus, Clarice é de quem conseguir pegá-la.
Estudo para Missa para Clarice – Um espetáculo sobre o homem e seu Deus.
Até 31 de março
Teatro dos Quatro
Rua Marquês de São Vicente, 54, Gávea – Rio de Janeiro
Informações: (21) 2239-1095
Sexta e sábado: 21h
Domingo: 20h
Editor e publisher da Revista Alma, Gustavo São Thiago trabalhou na grande em imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, especialmente na área de cultura. Estudioso autodidata das religiões, o jornalista finaliza sua primeira obra de ficção, o romance “Impermanência”, e medita diariamente.